quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Conto: Delírio em Grafite

Sinopse: Jim Calegari é um jovem ilustrador que está prestes a realizar o trabalho que impulsionará sua carreira, porém, estranhos acontecimentos o fazem questionar o que é real e o que é ilusão. No limite de sua sanidade, apenas um investigador de polícia parece ser capaz de ajudá-lo a sair da armadilha da qual se envolveu.

Nota 1: Eu perguntei o que as pessoas do meu perfil do Facebook gostariam de ler e algumas das respostas que tive foram: suspense, terror, policial, alteração da realidade pelo medo, ilustrador criando seres que ganham vida e mitologia japonesa. Procurei juntar um pouco de cada coisa e criei esta história, com algumas adaptações. Não sei ao certo se pode ser considerada uma história de terror. Eu quis desenvolver o conto de uma maneira que os elementos não fossem tão grotescos, mas um pouco mais sutis. Eu posso criar algumas histórias mais “pesadas”, mas estou optando por não fazê-lo. O intuito aqui não é chocar com imagens fortes e sim levar o leitor a um mundo estranho e enigmático. É mais uma questão do estilo próprio que estou desenvolvendo, espero que entendam e possam se divertir com a história mesmo assim. Muito obrigada a todos que colaboraram com o meu post!

Nota 2: O título foi escolhido por votação no Facebook.

Notas 3: Personagens usam linguagem informal, portanto, decidi não seguir todas as regras gramaticais em diálogos.

Delírio em Grafite

Por Claudia Mina

“...................................................”

“.............................................Jim.”

Jim abriu os olhos e, mesmo acordado, sentia como se estivesse num sonho. Parecia que havia uma voz que o chamava.

Um tanto desorientado, o rapaz levantou-se desajeitadamente da cama. Havia uma claridade incomum no quarto e Jim notou que havia deixado a luminária de sua mesa de trabalho acesa. O jovem caminhou até o local no intuito de apagar a luz e sua atenção se voltou a uma folha de papel em branco. Jim não se lembrava de tê-la deixado ali. Movido por uma força que o jovem ilustrador não compreendia, ele sentou-se na cadeira em frente à mesa, pegou um lápis e começou a esboçar formas de maneira solta. Não tinha nada em mente, apenas deixou sua mão guiá-lo por traços que aos poucos foram ganhando vida.

Pouco tempo antes da alvorada, ele havia terminado o desenho, e foi com surpresa que finalmente analisou o resultado do seu trabalho.

- Acho que esse é o melhor que já fiz – Jim disse a si mesmo, ainda espantado.

No papel estava uma figura de extrema beleza, uma deusa de cabelos longos e brancos, com refinadas vestes que se moviam com o vento e cobriam boa parte do espaço da folha. Assemelhava-se com uma daquelas ilustrações japonesas antigas, mas com traços marcantes do estilo próprio do ilustrador. Jim Calegari fazia seu trabalho misturando técnicas tradicionais de desenho e pintura, com as novas tecnologias digitais. O ilustrador achou o resultado curioso, bem diferente do trabalho que estava fazendo para o seu atual cliente. Pensava em como finalizar aquela ilustração, mas ela já parecia gloriosa do jeito que estava. Resolveu deixá-la daquele jeito. Ele precisava ter mais algumas horas de sono para poder trabalhar em um importante projeto que seria a porta de entrada para trabalhos ainda maiores. Parecia que finalmente seus anos de estudo e dedicação estavam prestes a dar-lhe frutos.

xxx

No dia seguinte, Jim acordou impressionantemente bem, apesar das poucas horas de sono. Levantou e foi fazer o café como sempre fazia. A comida, apesar de simples, parecia-lhe muito saborosa.

Ao se arrumar para sair, Jim podia sentir um cheiro agradável no ar, algo que ele não conseguia identificar o que era ou de onde vinha, era um aroma do qual ele nunca se lembrava de ter sentido.

Quando fechou a porta e pisou no pequeno quintal em frente a sua casa, notou que havia pétalas de flores espalhadas pelo chão. Estranhou aquilo, pois não tinha flores e nem os vizinhos mais próximos as tinham. Aquelas pétalas deviam ter viajado muito com o vento ou alguém as havia jogado em seu quintal. De qualquer forma, não era algo que o atrapalhasse tanto, mais tarde o ilustrador as tiraria de lá, embora ele não sentisse tanta necessidade. Elas eram diferentes, não pareciam com nenhuma flor que ele conhecesse e eram muito bonitas. Com o vento, elas se moviam em ondulações pelo chão e subiam levemente para depois cair delicadamente. Jim se viu estranhamente hipnotizado por elas e, por um breve momento, teve dificuldade de sair de seu transe e continuar com os afazeres do seu dia, até finalmente conseguir desviar seus olhos das curiosas pétalas e sair.

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Já era tarde quando voltou para casa. Jim tivera um dia excelente, tudo se deu melhor do que ele esperava.  O ilustrador sabia que devia aproveitar um pouco de seu tempo naquele final de dia para trabalhar no seu projeto, mas o que ele realmente queria era voltar na ilustração que havia feito na noite passada. Comeu alguma coisa apressadamente e, logo que pôde, sentou-se à sua mesa de trabalho. Admirou por um momento o que fizera e, de repente, colocou uma nova folha em branco na mesa. Sem parar, ele começou a preencher o espaço com traços e mais traços, até notar que havia desenhado aquela sua deusa do dia anterior. No entanto, havia mais espaço na folha, que ele começou a preencher como se estivesse em transe.

Horas depois, quando finalmente parou para olhar seu trabalho, ficou surpreso ao notar que além de ter preenchido aquela primeira folha, muitas outras haviam sido usadas. Sem se dar conta, ele começara um tipo de história. Na primeira folha havia aquela deusa de cabelos brancos que ele já havia desenhado antes, mas ao lado dela havia outro ser. A criatura se assemelhava à primeira em complexidade e traços do mesmo exotismo fascinante, mas em vez de cabelos brancos, tinha longos cabelos pretos com reflexos arroxeados, vestes escuras e olhos de um azul profundo. Parecia ser algum tipo de entidade superior pelo seu porte e seus trajes, provavelmente outro deus. No entanto, o novo ser não transmitia o mesmo sentimento sublime de paz que a entidade feminina emanava, ao olhá-lo, Jim sentiu-se mal, sua cabeça começou a latejar e ele começou a escutar um irritante zumbido que ele não sabia de onde vinha. Sua respiração ficou entrecortada e o rapaz foi tomado por uma espécie de ansiedade, uma espécie de tormento. Mesmo assim, ele não conseguia desgrudar seu olhar dos desenhos.

Como se em transe, acompanhou o seguimento da história que havia criado. Na segunda folha, os dois deuses pareciam discutir; na próxima folha, eles estavam no meio de uma briga violenta; na quarta e última folha, o deus obscuro se sobrepunha à deusa e esmagava seu pescoço. Logo após ver a última cena, Jim deixou a folha escapar de suas mãos. Estava abatido e assustado; suor escorria pela sua pele e seu corpo tremia.

Jim tentou respirar fundo e foi com dificuldade que conseguiu se acalmar. Foi até a cozinha e encheu um copo de água. Quando foi levá-lo à boca, porém, não era mais água que via, mas um espesso líquido avermelhado que se assemelhava a sangue. Assustado, Jim largou o copo e viu o vidro se estraçalhar no chão. Porém, não havia sangue nenhum no piso, apenas água. Atordoado, Jim resolveu procurar um calmante, deitou-se na cama e caiu no sono.

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Quando acordou, Jim sentia-se muito mal. A noite inteira teve pesadelos sobre os desenhos; via o deus maligno estraçalhar o corpo da deusa das formas mais variadas. Não entedia por que os desenhos o abalavam tanto.

Decidido a por um fim naquele episódio e esquecer tudo aquilo, Jim pôs-se às suas atividades diárias. Apesar disso, parecia que ele estava destinado a ter um dia muito ruim.

Ele começou com um café da manhã sem gosto. Depois tentou trabalhar no projeto para o seu cliente importante, mas parecia que o trabalho não rendia e a qualidade estava bem abaixo do que ele estava acostumado. No final da tarde, ele havia desistido. Para não ter o dia perdido, resolveu que apenas relaxaria à noite, faria um bom jantar, abriria uma garrafa de vinho e escutaria uma boa música para relaxar.

Jim saiu de casa e foi até o açougue, decidiu comprar um bom corte de carne de primeira e voltou para preparar o seu jantar. Já na cozinha, foi pegando os utensílios e temperos, mas teve que parar um momento, pois começou a sentir um cheiro muito estranho. Rapidamente, o odor se alastrou pela cozinha toda e Jim mal podia respirar. Parecia que havia algo estragado. O jovem tentou localizar a fonte do cheiro e chegou à conclusão de que ele vinha do pacote de carne. Ao abri-lo, arrependeu-se de fazê-lo. Um odor ainda mais forte de comida apodrecida se espalhou pelo ambiente, e não era só isso que desagradou o jovem, várias larvas brancas rastejavam pela carne. O primeiro pensamento de Jim foi jogar o pacote fora, mas logo mudou de ideia. Furioso, Jim saiu de casa e levou a carne estragada de volta ao açougue.

O lugar já estava deserto e o dono estava prestes a fechar o estabelecimento.

- O senhor não tem vergonha de me vender carne podre?! – Jim esbravejou.

- Como é que é? – o velho açougueiro não entendia a acusação.

- Olha essa carne – Jim colocou o pacote na bancada.

O açougueiro abriu o pacote, ressabiado, deu uma olhada, e voltou a encarar o jovem com ar de reprovação – Não há nada de errado com essa carne.

- Como não? – Jim abriu o pacote com violência e revelou o que continha.

- Vê, não tem nada de errado – o açougueiro disse.

A carne parecia saudável.

- Não pode ser... Eu vi larvas e tudo mais nela – Jim revirou a carne com os dedos, mas por todos os lados ela parecia completamente normal.

- Rapaz, eu estou cansado, você vai ficar aqui me fazendo perder tempo?

Jim não entendia o que estava acontecendo, ele havia visto claramente o estado da carne quando estava em casa. – O senhor me desculpe, acho que não estou bem. – Deixando a carne lá mesmo no açougue, o ilustrador voltou para casa. Chegando, resolveu que não comeria nada e foi para a cama mais cedo.

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Jim acordou assustado no meio da noite, tivera sonhos estranhos mais uma vez. Quando se deu conta, não estava na cama como esperava, e sim, debruçado em sua mesa de trabalho. Estranhamente, percebeu que havia feito novos desenhos... enquanto dormia.

- Não é possível...

O jovem nunca desconfiou de sonambulismo, mas estavam lá no papel, coisas que ele nem se lembrava de ter feito. Decidiu se afastar do local. Não entendia o porquê de estar tão transtornado naquele dia.

Tentou refletir no que havia acontecido na sua vida nos últimos tempos, mas nada justificava uma mudança tão repentina de seu humor. Sem saber o que fazer, voltou para a cama para dormir. Quem sabe aquele havia sido apenas um dia atípico, o próximo com certeza seria melhor.

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Jim acordou com a boca seca e uma sensação de pavor. Sentia muito frio, embora o termômetro do relógio digital indicasse temperatura agradável. O jovem levantou-se da cama e preparou-se para sair. Aquele seria um dia importante, ele teria uma reunião na empresa do seu cliente e mostraria o andamento de seu trabalho. Enquanto arrumava o material para a apresentação, Jim não pôde deixar de reparar que o ar ganhara um cheiro extremamente ruim. O ilustrador procurou a fonte de tal odor putrefato, mas não conseguiu achar de onde ele vinha. Quando viu que já estava ficando tarde, desistiu de procurar, pegou suas coisas e saiu.

Quando estava nas ruas, reparou que havia uma incomum comoção nas vizinhanças. Algumas viaturas policiais bloqueavam uma rua próxima e uma multidão estava no local.

- O que está acontecendo? – Jim perguntou a um conhecido, por curiosidade.

- Uma coisa feia, encontraram o seu Ezequiel morto. Dizem que levou tanta facada que estava irreconhecível.

Jim sentiu um frio na espinha. Lembrou-se da discussão que tiveram na noite anterior e se sentiu culpado. Afinal de contas, o velho açougueiro não tinha feito nada. O ilustrador, porém, não tinha nada a ver com a morte e não podia fazer nada a respeito. Ainda tinha coisas importantes para fazer, então seguiu em seu caminho.

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No final da tarde, Jim voltava da reunião. Não havia ocorrido nenhum imprevisto. Tudo certo, o cliente estava gostando do andamento do trabalho, ele só precisava voltar para a casa e continuar com o projeto. Quando estava alcançando o portão, porém, sentiu uma forte corrente de água atingi-lo em cheio.

- Ai, moço, você me desculpe! – disse sua vizinha com uma expressão de culpa no rosto e uma mangueira na mão.

- Não foi nada... – Jim tentou acalmar a velha senhora. Havia sido apenas água... No entanto, ele percebeu que a pasta que levava com seus trabalhos também havia sido atingida.

- Você está bem? – a senhora perguntou quando viu o olhar de aflição no rosto do rapaz.

Jim não respondeu e apenas entrou correndo em sua casa. Quando abriu a pasta, viu que a água havia se infiltrado pelas frestas e molhado parte do seu trabalho. Ele começou a separar as folhas e analisar o estrago, e foi com alívio que viu que não estava tudo perdido. Aparentemente, apenas as bordas haviam sido molhadas e quando elas secassem, ele poderia aproveitar o resto do desenho. Felizmente, não era seu trabalho finalizado, era somente o esboço. Curiosamente, alguns respingos de água haviam atingido algumas partes do meio das folhas, nos rostos das pessoas, dando a impressão de que elas haviam chorado.
Cuidadosamente, Jim pendurou as folhas para secarem em um varal improvisado na sala e preparou seu jantar normalmente. Não houve nenhum imprevisto até o fim do dia, e o jovem ilustrador foi dormir com a certeza de que o que o que havia acontecido anteriormente, foi apenas um corriqueiro dia ruim.

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Jim acordou com batidas na porta. Ainda sonolento, caminhou até a entrada da casa e foi ver quem era a pessoa que batia tão insistentemente. Era um homem de cabelos castanhos curtos, que aparentava ter 35 anos, vestido com um sobretudo marrom sobre um terno preto.

- Bom dia, meu nome é Rick Cambiaso, sou investigador de policia. Posso fazer algumas perguntas?

O ilustrador logo se lembrou do açougueiro que havia morrido e uma estranha sensação de desconforto surgiu. Como não tinha nada a ver com o caso, também não tinha nada a temer - ele quis acreditar.

- Você quer entrar? – Jim reparou que havia vários policiais e viaturas em sua rua.

- Não precisa, mas se você tiver uma xícara de café, eu aceito – o investigador sorriu.

Jim deixou o homem entrar em sua casa e foi preparar o café.

- Você não está curioso? – perguntou Rick.

- Eu? – Jim perguntou.

- Em saber por que eu estou aqui – o investigador perguntou de modo descontraído, mas o ilustrador sentia algo mais na pergunta.

- Ah, sim, o que está acontecendo? – Jim perguntou calmamente. - Eu vi um monte de gente lá fora.

- Sua vizinha aqui do lado, a dona Rosa, foi encontrada morta.

Aquilo realmente surpreendeu o ilustrador.  – Como foi isso?

- Parece que o filho deu uma passada hoje de manhã e já encontrou ela sem vida.

- E não foi morte natural? – Jim podia dizer pela comoção causada.

- Eu duvido – Rick disse.

Jim passou a xícara de café para o investigador.

- Por acaso, você não ouviu nada de estranho esta noite? – Rick perguntou.

- Não ouvi nada.

- Nada suspeito?

- Parecia tudo normal quando eu cheguei, eu a vi lavando o quintal e depois entrei em casa. Não vi nem ouvi nada de estranho depois.

- Você desenha? – Rick perguntou ao ver as folhas penduradas perto das janelas.

- Eu sou ilustrador.

- Ah – Foi apenas o que Rick disse antes de terminar o café. – Se você se lembrar de algo – O investigador entregou um cartão. – Qualquer coisa, não se esqueça de me ligar. – Rick foi até a porta. – Ah, e obrigado pelo café – disse antes de fechar a porta e sair.

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Jim estava tendo um sono agitado. Mais uma vez via imagens sangrentas. Ora elas eram rápidas e confusas, ora eram lentas e detalhadas. Em seu pesadelo, Jim pôde ver com detalhes o corpo do açougueiro ser esfaqueado várias vezes no estômago, até sua pele se romper, derramando suas vísceras no chão do açougue. Jim também pôde ver a sua vizinha deitada em sua cama, estrangulada até a morte, até sua face paralisar em uma expressão de puro horror.

- “..................................................Jim.” – uma voz o chamava.

Lentamente, o jovem abriu seus olhos e viu que a luminária de sua mesa de trabalho estava mais uma vez acesa. Sabendo que não conseguiria dormir até ver o que era, o ilustrador caminhou até o local e sentou-se. Pegou o primeiro lápis que viu pela frente e começou a rabiscar uma folha em branco. Quando se deu conta, havia terminado. Mais uma vez aquele deus de cabelos arroxeados estava no papel. De repente, algumas palavras surgiram em um espaço de folha que antes estava em branco, tornando-se mais e mais escuras, até que Jim pôde ler o que estava escrito.

“Não era isso que você queria?” Era como se o deus perguntasse.

- Isso o quê? – Jim perguntou.

Apenas uma risada foi ouvida, algo que parecia que não havia sido no quarto, mas dentro da mente do rapaz. Jim respirou fundo e apagou a luminária, voltou para a cama e deitou-se sem mais nenhuma pergunta.

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No dia seguinte, Jim acordou normalmente e tomou seu café da manhã. Parecia que tudo havia finalmente voltado ao normal. No final da manhã, começou a trabalhar no seu projeto, e continuou assim até o começo da tarde, quando foi interrompido por uma ligação. Jim atendeu o celular e não acreditou nas palavras que ouviu.

- Como assim vocês estão cancelando o projeto? – Jim não podia entender, tudo estava indo bem, o cliente havia gostado da ideia. Como era possível que eles simplesmente estavam desistindo de algo que estava sendo planejado há tanto tempo. – E todo o trabalho que eu fiz até agora?

O jovem não acreditava que havia perdido uma chance daquelas. Se tudo tivesse dado certo, seu trabalho receberia grande visibilidade e finalmente ele poderia ter seu nome consagrado.

Não demorou muito para que Jim pegasse suas coisas e saísse, ele precisava de uma boa explicação para tudo aquilo.

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O jovem voltou para casa abalado, foi à empresa e tentou conversar, entender melhor os motivos e quem sabe entrar em um melhor acordo, mas a recepção calorosa de outrora deu lugar a frias desculpas.

Jim estava convencido a abrir a garrafa de Uísque que estava guardada e afogar suas mágoas na bebida, não sabia mais o que fazer para esquecer. Quando foi pegar a garrafa na cozinha, porém, notou um estranho som. O jovem voltou para a sala e viu que a TV estava acesa. Jim não se lembrava de tê-la ligado. Sua atenção se voltou para o programa que passava. Era um noticiário, parecia que havia algo acontecendo no momento. Havia uma repórter relatando que estava no local de um grave acidente de trânsito. Um carro desgovernado havia atingido um homem. A repórter relatava que haviam acabado de identificar a vítima. Jim conhecia bem quem era... Havia se encontrado com ele naquele mesmo dia. Era seu ex-cliente, Oliver Marshall.

Logo após a notícia o rapaz sentiu seu estômago se revirar e correu para o banheiro. Ele abriu a tampa da privada e começou a vomitar. O que ele via sair de sua boca, porém, era bem diferente do que ele podia imaginar. Era como se estivesse vomitando um pó acinzentado, que ele identificou como grafite. Quando finalmente conseguiu parar, horrorizado, percebeu que não havia nada além de água na privada. Ele havia imaginado tudo aquilo.

Lentamente sua pressão foi voltando ao normal e os tremores que estava tendo enquanto passava mal cessaram.

Jim juntou suas forças e voltou para a sala. A TV estava desligada. Teria ele imaginado tudo aquilo? O jovem estava realmente questionando sua sanidade. Ele não entendia. Nada daquilo fazia sentido. O ilustrador nunca em sua vida tivera episódios como aqueles. Procurando se acalmar, resolveu não tomar o Uísque. Tentou comer algo saudável no jantar e foi dormir cedo. Tomou um calmante e logo depois se viu cair no sono.

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O jovem escutava um som leve e continuo e, ainda com os olhos fechados, tentava descobrir o que era. Foi quando algo molhado caiu em sua face que ele finalmente se viu totalmente acordado. Havia sido alguma coisa, como uma gota, mas o jovem tinha certeza que não havia goteiras no seu quarto. Quando olhou para o teto, não viu nada, porém, quando olhou para o colchão, viu que havia uma pequena poça de um líquido vermelho. De tempos em tempos uma gotinha caía e se acumulava numa dobra de seu lençol. Jim mais uma vez olhou para cima e não viu sinal nenhum de rachadura ou buraco, ficou perplexo ao notar que, mesmo assim, as gotas vermelhas continuavam caindo. Ele tocou o líquido com curiosidade e viu que seu dedo se tingia de vermelho.

- O que é isso? - ele perguntou, mais para si mesmo.

“Isso é sangue” – uma voz respondeu.

Jim quase deu um pulo ao ouvir aquilo. Era a mesma voz que ele havia escutado na noite anterior, mas dessa vez ela parecia ressoar por todo o quarto. O jovem se encolheu num canto da cama e olhou ao redor, não parecia ter nada nem ninguém... mas então de onde viria aquela voz?

“Você sabe”.

Jim começou a tremer e a suar frio, aquela voz parecia muito real para ser imaginação.

“Não tenha medo. Só fiz o que foi melhor para você.”

- Fez o quê? – Jim não sabia de onde tirou forças para perguntar.

“Você sabe.”

- Você matou aquelas pessoas?

Nenhuma resposta. Jim, porém, sabia onde procurá-las. Tomado por uma coragem momentânea, o jovem foi até sua mesa de trabalho e começou a desenhar. Foi então que viu sua própria mão colocar no papel as imagens que apenas havia visto em seu sonho. Viu o açougueiro esfaqueado e a vizinha estrangulada. No entanto, também viu uma imagem que era nova. Viu o corpo do seu cliente ser feito em pedaços pelo veículo que o atingiu. E tudo se tornava mais vívido com os pingos de sangue que caiam sobre as folhas enquanto Jim desenhava.

- Quem é você? – Jim logo se viu traçando as formas do deus que havia criado.

“Eu sou o deus da destruição e do caos.” As palavras surgiram no papel.

- Por que está fazendo isso? – Jim perguntou.

Mais uma vez, palavras começaram a surgir.

“Por que você quis.”

- Eu não queria que nenhum deles morresse!

“Não queria?”- Um riso ressoou pelo quarto.

- Eu juro que não queria!

“Nem aquele seu cliente que dispensou você?”

- Nem ele! Por que eu iria querer isso?!

“Não se sente mais aliviado? Agora você terá mais tempo de se dedicar só a minha história. Eu prometo a você, quando tudo estiver terminado, você será reconhecido mundialmente.”

- Eu não acredito nas suas promessas! E sabe de uma coisa? – Jim estava tomado por um momento de revolta e juntou toda a sua coragem para a ideia genial que veio em sua mente. – Eu criei você, agora posso me desfazer de você! – Jim pegou uma borracha e começou a apagar ferozmente a folha de papel.

“Você não vai conseguir.”

Jim via a face do deus desfigurada pelos golpes de sua borracha. – É o que você pensa! – Num outro momento de desespero e bravura, Jim pegou um isqueiro e segurou o papel. – Adeus.

A folha começou a queimar, a diminuir e se transformar em cinzas. Uma a uma, elas foram sendo queimadas. Jim ainda titubeou ao ver seu primeiro desenho da série, a deusa de luz que havia criado, mas mesmo assim, ateou fogo em sua obra mais bonita. Ao final, Jim se sentia aliviado. Acreditava que finalmente havia dado um fim naquilo tudo. Foi quando escutou aquele riso mais uma vez e se viu de repente na cama.

Era como se Jim tivesse despertado de um vívido sonho, embora ele tivesse certeza de que tudo o que passara havia ocorrido. Mais uma vez, ele levantou e caminhou até sua mesa de trabalho. Os desenhos estavam todos lá.

Jim levou suas mãos aos cabelos e os puxou em nervosismo, dando um grito de frustração. Decidido a por um fim naquilo mais uma vez, ele pegou as folhas com as ilustrações e tentou rasgá-las, porém, antes que ele cumprisse seu intento, uma força o obrigou a soltá-las e ele foi derrubado no chão. Ainda desnorteado, sentiu que seu quarto começava a tremer. Jim procurou algo para segurar, mas não conseguiu, era sempre puxado de volta para o centro do quarto.

Paredes, teto e chão chacoalhavam como em um terremoto e um pó acinzentado começou a se materializar no ar. As partículas finas começaram a subir pelas paredes, até formarem desenhos na superfície branca. Jim pôde ver algumas curvas se formarem e então o contorno de serpentes se tornando cada vez mais claro. Os desenhos rastejavam pelas paredes como se estivessem vivos, e foram ganhando mais e mais definição, até elas se soltarem da superfície lisa. Jim estava cercado por cabeças de serpente que o rodeavam, espreitando-o com olhos maliciosos e mandíbulas abertas.

“Você ainda ousa me desafiar?”

Jim ouviu a voz retumbante do deus do caos.

- Você não existe! Seu poder é apenas uma ilusão! – Jim o desafiou.

“Tem certeza?”

As serpentes chegaram mais e mais perto, balançando seus corpos como se quisessem hipnotizar sua vitima antes do bote. Então o quarto começou a tremer mais e mais e uma chuva de grafite caiu sobre ele. Jim podia sentir os finos grãos em contato com sua pele, como se eles fossem mesmo reais. Ele os esfregou em seus dedos e viu suas digitais serem tingidas pelo pó cinzento.

- É real.

Foi então que uma das serpentes parou de se mover por um breve momento, até jogar seu corpo gigantesco na direção do ilustrador. Jim conseguiu se desviar por pouco, rolando seu corpo pelo chão. Sua cabeça acabou batendo em uma mesa com o movimento; o baque, além de causar-lhe uma pontada de dor, fez com que alguns objetos que estavam em cima da superfície de madeira caíssem no chão. Quando Jim se deu conta, um desses objetos era seu celular e outro o cartão de visitas que o investigador da policia havia dado. Pedir socorro não parecia uma ideia tão ruim naquele momento e apressadamente o ilustrador discou o número do cartão. A chamada demorou a ser atendida, mas após a segunda tentativa uma voz sonolenta atendeu.

- É bom ser algo importante – disse o investigador no outro lado da linha.

- O assassino da senhora Carbone está aqui – foi a última coisa que Jim teve tempo de dizer antes que uma das cabeças da serpente o atingisse em cheio com sua mordida.

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-Ei.

Jim escutava uma voz.

- Você está me ouvindo?

O ilustrador finalmente recuperou os sentidos e deu de cara com o investigador da polícia.

- Eu já ia pegar um balde de água para jogar em você. Precisa de ajuda? – Rick estendeu-lhe a mão.


Jim decidiu aceitar a ajuda para levantar.

- O que aconteceu por aqui? – Rick perguntou. – Parece que houve algum tipo de briga. – O quarto estava todo em desalinho, com objetos jogados ao chão e móveis fora do lugar. – Só que não vi sinal algum de outra pessoa ou de arrombamento, você poderia me explicar?

Jim sentia sua cabeça latejar. Fora a desordem do quarto, tudo parecia ter voltado ao normal. Não havia desenho nenhum nas paredes. Ele não sabia como explicar a situação.

- Quando você chegou... – Jim começou. – Não havia nada de anormal?

- Fora a bagunça, nada.

- Eu não sei como dizer isso, mas sei quem foi responsável pela morte da dona Rosa, e sei quem foi o responsável pela morte de mais outras duas pessoas pelo menos.

Rick arqueou uma sobrancelha. – É mesmo? Então diga.

- Só que você não vai acreditar – Jim desabafou.

- Durante toda a minha carreira eu vi coisas inacreditáveis.

- Eu criei um monstro.

- Um monstro? Que tipo de monstro?

- Aquele desenhado naquelas folhas de papel. – Jim apontou para a sua mesa de trabalho.

Desconfiado, Rick caminhou até o local e verificou cada folha. – Não vejo nada de mais aqui.

Jim foi até sua mesa. – Espera um momento... Isso não estava assim antes. – Jim notou que o deus continuava ali, mas as palavras que surgiram no papel enquanto ele falava haviam sumido.

Rick pôs a mão no ombro de Jim. – Há alguma outra coisa que você quer me falar, você precisa de alguma outra ajuda...

- Como assim? – Jim perguntou sem entender.

- Você tem família ou amigos a quem possa recorrer?

- Tenho.

- Você é dependente de algum tipo...

- Eu não uso drogas, eu só bebo muito de vez em quando – Jim estava ficando nervoso.

- Eu vi alguns calmantes...

- Eu quase nunca tomo eles... – Jim tentava se explicar. - Você revistou minha casa?

- Você me chamou dizendo que o assassino estava aqui. Eu fiz uma revista.

- Você deve achar que sou louco agora...

- Todos nós temos algum tipo de problema... Se quiser, tem um amigo que pode conversar com você, talvez seja bom se consultar com ele, dizem que ele é um ótimo psiquiatra.

- Você está dizendo que eu sou louco?

Rick ficou olhando para o rapaz mais jovem por um momento, até finalmente dizer. – Como eu disse, é normal que algumas pessoas tenham algum... problema.

Jim segurou os ombros de Rick e o encarou. – Eu não sou louco, entende? Eu não sou.

- Eu acredito, mas talvez você precise de ajuda.

- Eu preciso de ajuda, mas para por um fim em todas essas mortes!

- Mais de uma, você disse.

- Sim, mais de uma.

- Conte sua história. – Rick olhou para as horas em seu celular. – São 5h20 da manhã agora e acho que não tenho nenhum lugar para ir no momento... Eu só gostaria de pedir uma xícara de café...

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- Resumindo a história, você quer dizer que seu desenho ganhou vida e está saindo por aí mantando pessoas? – o investigador perguntou com tranquilidade.

- Você não acredita, não é?

- Você vai concordar comigo que é uma história difícil de acreditar...

- Eu não devia ter contado para você. Mais do que nunca, agora você deve achar que eu sou doente.

- Eu quero acreditar em você, mas você não está tornando as coisas fáceis para mim...

Foi então, que Jim teve uma ideia. – Você poderia ficar uma noite aqui, ver com seus próprios olhos. Essa... coisa que eu criei precisa ser parada.

- E você quer que eu traga reforços policiais?

- Se possível... – Jim olhou bem para a cara do investigador. – Mas você não vai fazer isso... É claro que não...

- Já enfrentei coisas muito piores, acho que eu dou conta de alguns desenhos.

- Você não está levando isso a sério... mas tudo bem, eu entendo.

- Pode deixar, eu volto aqui hoje à noite. – Rick deus uns tapinhas amigáveis nas costas de Jim. – Não se preocupe, resolvemos isso hoje.

xxx

Jim havia passado o dia fora, não suportaria a ideia de permanecer em sua casa sozinho. Tentou passar seu tempo relaxando. Foi a um museu ver uma nova exposição, depois foi ao cinema e, por fim, passou em um mercado para comprar algumas coisas para passar a noite. Tudo correra bem e sem imprevistos e Jim quase se esqueceu das coisas estranhas que estavam acontecendo. Quando se aproximava de sua casa, porém, começou a sofrer de ansiedade. Seus músculos ficavam mais tensos a cada passo e ele começou a suar frio. Para seu alívio, Rick estava esperando do lado de fora do seu portão.

- Faz muito tempo que você está aqui?

- Um pouco – Rick deu de ombros.

Jim abriu o portão de sua casa e deixou o investigador entrar.

- Eu trouxe um macarrão do supermercado, tá a fim de comer? Eu posso pedir uma pizza também.

- Qualquer coisa – Rick disse enquanto se sentava à mesa da cozinha.

Jim pegou os pratos e deixou o macarrão na mesa.

- Tem cerveja? – Rick perguntou.

- Tem. – Jim abriu a geladeira e pegou duas latas. – Tem mais aqui se quiser.

- Pode deixar – Rick disse ao se servir. – Tem queijo também?

- Acho que tem – Jim deu uma procurada em sua cozinha por parmesão ralado e encontrou um pacote.

Rick pegou o queijo e polvilhou seu macarrão com ele.

Jim sentou-se e se serviu.

- Eu queria agradecer por você ter concordado em ficar aqui. Eu sei que...

- Não precisa dizer nada – Rick disse enquanto continuava comendo normalmente.

Após o jantar, os dois já estavam preparados para enfrentar o que a noite os reservava.

- Pode ficar com a cama – Jim disse quando entraram no quarto.

- Não precisa, vou ficar na poltrona assistindo o jogo, se não se importar.

- Pode ficar.

Rick pegou o controle remoto, sentou-se na poltrona e acendeu a televisão. – Tem como pegar uma cerveja para mim?

Jim foi até a cozinha e voltou com duas latas de cerveja. – Se quiser mais pode pegar lá. – Ele viu que Rick já estava entretido no jogo. Sem saber o que fazer, Jim resolveu ligar seu computador e ficar vendo coisas aleatórias na internet.

As horas se passaram e quando Jim notou, já era mais de meia-noite. O jogo havia acabado e Rick estava dormindo na poltrona. Ele continuou por mais uma hora na internet, mas viu que o sono estava vindo. Após um longo bocejo, ele desligou o computador e foi até a cama. Resolveu deixar apenas a luminária de sua mesa de trabalho acesa e desligou as outras.

Aparentemente, sua criatura maligna não estava a fim de aparecer naquela noite. Quando estava prestes a dormir, porém, começou a escutar um barulho, um leve ruído. Abriu seus olhos lentamente e procurou pela fonte daquele estranho som. Viu que algo parecia estar brotando das folhas de papel na mesa.

A princípio, não dava para definir direito o que era, mas depois conseguiu ver que pequenas partículas de grafite estavam saltitando e ganhando forma. Quando percebeu isso, todos os seus instintos de alerta foram despertados.

- Acorda, Rick – Jim chamou, mas o investigador continuava dormindo. – Rick! – o ilustrador chamou mais uma vez.

Jim saltou da cama e correu na direção do investigador, porém, algo o impediu. A criatura maligna começou a sair das folhas, como se estivesse emergindo após um mergulho; seu tamanho aumentava à medida que ele saia. Quando estava finalmente livre, caminhou até o meio do quarto, envolto de um turbilhão de grafite. Fora do limite do papel, o ser maligno tinha um tamanho impressionante. Parecia ter mais de 2 metros e meio. Ainda parecia com uma ilustração viva, o mesmo estilo de pintura oriental, os mesmos traços.

- “Você pensou que estava livre de mim?” – a criatura disse com sua voz sobrenatural, melodiosa e enigmática, que ressoava por todo o quarto.

Jim, estupefato, viu-se frente a frente com sua criação. Os olhos sobrenaturais olhavam fixamente para ele. Em seguida, Jim viu o ser maligno se voltar a Rick e levantá-lo pelo pescoço com apenas uma das mãos, como se o investigador não tivesse peso algum.

- Por favor, não faça nada com ele! Ele não fez nada!

O deus do caos levou o corpo suspenso no ar e empurrou a cabeça do investigador contra a parede; o som do baque gerou um pavoroso estrondo.

- Por favor, pare! – Jim assistia à cena horrorizado. O ser continuava golpeando a cabeça do investigador contra a parede, até a pele e o crânio começarem a ceder.

Quando o deus do caos finalmente terminou, a parede estava tingida de sangue e pedaços de cérebro. A cabeça do investigador estava irreconhecível, completamente esmagada. O deus largou o corpo no chão e se voltou novamente para o ilustrador. – “Agora, o que farei com você?”

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Jim acordou com um grito. Olhou ao redor, assustado, e viu que estava deitado no chão.

- Parece que não dormiu bem... – disse uma voz conhecida.

O ilustrador ficou aliviado ao perceber que Rick ainda estava vivo. Jim começou a rir – Você não sabe como eu fico feliz em ver você!

- É mesmo? – Rick perguntou, havia algo de diferente na expressão do investigador.

Antes que Jim pudesse responder, alguns homens da polícia entraram no quarto.

- Podem prendê-lo – Rick deu a instrução.

- Mas o que está havendo? –Jim se viu algemado e levado para fora de sua casa.

- Você tem o direito de permanecer calado. Tudo o que disser poderá ser usado contra você – Rick deu uma risada zombeteira. – Não é algo assim que dizem nos filmes? Acho que é isso.

- Eu não fiz nada! – Jim protestou.

- Todos dizem a mesma coisa. - Rick colocou as mãos nos ombros do ilustrador e olhou para ele. – Quer um conselho? Não diga mais nada.

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Jim tentava entender o que acontecera. Ele sabia que havia agido de maneira suspeita, mas não havia nada que o incriminasse, ele não havia feito nada. Em dado momento, ele viu o guarda abrir o portão de sua cela e teve esperanças de que o engano tivesse sido esclarecido. Ele andou pelos corredores da delegacia e foi levado a uma sala, onde encontrou Rick sentado atrás de uma mesa de escritório.

- Por favor, sente-se – Rick disse após dar um gole em seu café.

- Você não vai mandar me soltar? – Jim levantou os braços e mostrou as algemas.

- Você promete cooperar?

Jim balançou a cabeça de maneira afirmativa.

Rick fez um gesto para o policial, que retirou as algemas.

- Diga que isso não é verdade, que não passou de um mal entendido... – Jim ainda tinha esperanças.

- Sabe de uma coisa? – O investigador deixou seu café na mesa, reclinou seu corpo na poltrona e olhou fixamente para o rapaz. – Eu realmente queria acreditar que você era inocente.

- Mas eu sou inocente! – Jim esbravejou.

Rick fez sinal para que o ilustrador se silenciasse. – Você prometeu se comportar.

Jim murmurou uma série de xingamentos, mas voltou a ficar quieto logo depois.

- Eu gostaria que isso não tivesse acontecido, Jim, você parecia um cara legal, mas as provas vão todas contra você.

- Que provas? Não existem provas, eu não fiz nada!

- Você matou aquelas três pessoas. Ezequiel Zarco, Rosa Carbone e Oliver Marshall.

- Eu não matei!

- Você pode continuar negando, mas há evidências suficientes. Quando eu vi você pela primeira vez, eu realmente não desconfiava que você tivesse feito aquilo. Só estava atrás de alguma pista que pudesse me ajudar... mas você não só deu a pista, praticamente se entregou... Talvez seja culpa, eu entendo...

- Como assim, eu me entreguei?

- Quando entrei para investigar a morte da senhora Carbone, notei que havia marcas de um pó acinzentado no chão e ao redor do corpo. Graças ao seu convite à sua casa, pude colher material para comparar com os da casa da sua vizinha, e descobri que era o mesmo tipo de grafite. Como você mencionou a morte do açougueiro, fiz uma nova busca no local, e encontrei amostras do mesmo grafite que você usa. Além disso, você havia mencionado seu cliente. E não é que recebemos as filmagens de uma câmera de segurança em um prédio vizinho ao do escritório dele, adivinha quem estava lá?

- Eu realmente fui a o escritório dele, mas eu não o matei, isso você não tem como provar!

- Sinto lhe informar que tenho. A câmera mostrou você seguindo o Oliver e depois empurrando ele na rua quando pensou que ninguém estava vendo.

- Não pode ser! Deve ter sido outra pessoa! Eu não fiz isso.

- Foi encontrado um fio de cabelo seu no paletó que Oliver Marshal usava. Além disso, a faca que matou o Ezequiel Zarco havia sumido, mas foi encontrada em um terreno baldio perto da sua casa. Ela tem suas digitais.

- Isso não é possível, alguém está tentando me incriminar!

- Aquele desenho seu? Foi ele que fez tudo isso?

Jim apenas olhou para Rick.

- Não fique tão alarmado, eu sei que você vai ter um comportamento exemplar na prisão. Eu realmente não acho que você seja um cara de todo ruim, mas você precisa pagar de alguma forma pelos crimes que cometeu.

- Por favor, eu sou inocente.

- Isso quem vai decidir agora é o júri. – Rick chamou o guarda, que entrou na sala e algemou o ilustrador novamente.

- Por favor... – Jim olhou mais uma vez para o investigador, antes de ser levado de volta para a sua cela.

- Não posso fazer mais nada por você – Rick disse para o vazio da sala, antes de tomar o último gole de seu café.

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“É uma pena, podíamos ter construído uma história bem diferente juntos, mas você não quis.”

Lentamente, os desenhos nas folhas foram se apagando, as cores e o grafite foram se desfazendo, até que apenas restassem papéis em branco.

FIM


Nota: Não utilizei referências diretas à mitologia japonesa, mas me inspirei vagamente nas figuras de Amaterasu e Susanoo. O deus das tormentas me deu a impressão de gostar de criar confusões, por isso, resolvi me inspirar nele para criar minha criatura caótica e maldosa. As serpentes que aparecem em uma cena são referências à luta de Susanoo contra a hydra.

Nota 2: Se quiserem, podem avisar se encontrarem algum erro. Por mais que eu revise os textos 5, 10, 20 vezes, sempre acho alguma coisa que escapa...

8 comentários:

  1. Claudia, isso precisava ser filmado! :D Pensei que o Jim era um psicopata com dupla personalidade hahahaha

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    1. Que legal que você achou isso dele! xD Muito obrigada por ter lido e comentado ^^

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  2. Que situação angustiante, sofrei junto com o Jim! Haha!
    Ótimo conto Claudia. :D

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    1. Muito obrigada, Anna Carla! Que bom que você gostou e conseguiu sentir o que o Jim passou :)

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  3. Olá!

    Eu simplesmente adorei esse conto. É o estilo que eu gosto, uma mistura de sobrenatural com terror psicológico. O texto está super bem escrito e a narrativa é envolvente, cada trecho traz um novo mistério sobre as criaturas do desenho, mas também a dúvida se não é Jim quem está imaginando coisas. A forma como o texto foi descrito nos permite visualizar as cenas, sem contar que o tema também é original (e foge dos clichês rs). E o final realmente fechou o conto com chave de ouro.

    Parabéns! Muito bom mesmo, vou tentar dar uma lida nos outros contos quando tiver um tempinho :)

    Bjs!

    http://marcasindeleveis.blogspot.com.br

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    1. Nossa! Que bom, fico muito feliz que tenha gostado do conto, muito mesmo! Também fico feliz em saber que gosta do estilo! Muito obrigada pelos comentários a respeito do texto. Agradeço cada palavra!

      Espero que goste dos outros contos também!

      Beijos!

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  4. Adorei isso. Sempre sinto que a mania de pensar visualmente e escrever roteiros atrás de roteiros está me privando de compartilhar a experiência plena da escrita. Talvez seus contos realmente sirvam como inspiração para mudar isso. Gostei do ritmo, da imersão. Só descobri o blog hoje, mas já está nos favoritos.

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    1. Que bom que gostou! Acho que cada experiência com a escrita é válida e tem seu sabor especial. Faz alguns anos que entrei no mundo dos contos e tem sido bem gratificante. Fiquei muito feliz ao ler o seu comentário e sinto-me honrada em ter a oportunidade de ajudá-lo com a sua inspiração!

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